Ismar Viana: “Não há Estado Democrático de Direito sem controle, também não há controle sem regras”

Entrevista de Ismar Viana, Auditor de controle externo do TCE-SE, para o JL Política

“O fortalecimento do controle da administração pública constitui um dos elementos fundamentais da democracia”

Na segunda-feira, dia 4, o advogado sergipano, bacharel em Letras e sobretudo auditor de controle externo do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe – TCE-SE -, Ismar Viana, 40 anos, assumiu silenciosamente – como impõem esses tempos pandêmicos – o comando de uma entidade de classe muito importante exatamente porque agrega uma categoria identicamente muito importante.

Trata-se da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo do Brasil – ANTC -, na qual ele terá um mandato de dois anos – 2021 e 2022.

Ismar Viana assumiu a ANTC em um solenidade virtual, à distância, mas a abrangência que ele confere a essa entidade e sobretudo aos profissionais que integram e compõem a categoria que ela representa é algo profundamente real e concreto.

Real, concreto e significativo. Mais do que uma mera deferência corporativa para com a categoria a que ele pertence – e a represente desde o dia 4 -, Ismar Viana coloca os auditores de controle externo do Brasil como sujeitos elementares e imprescindíveis, e que dão consequência ao Estado Democrático de Direito. “O fortalecimento do controle da administração pública constitui um dos elementos fundamentais da democracia”, diagnóstica Ismar Viana

“Da mesma forma que não há Estado Democrático de Direito sem controle, também não há controle sem regras, do que resulta possível afirmar que a concretização do direito à regular atuação dos Tribunais de Contas é tida como condição de legitimidade das suas decisões, como condição de acreditação social, fim que depende do respeito ao postulado do devido processo legal”, reforça.

“A ANTC é uma entidade de classe de âmbito nacional que representa exclusivamente os auditores de controle externo. E quem são esses agentes públicos?”, diz Ismar, situando a entidade que ele vai presidir daqui mesmo de Sergipe e numa estrutura colegiada tão bem amarrada, ou compartilhada, que não parece lhe pesar muito sobre os ombros.

Sim, afinal, quem são mesmo esses sujeitos chamados de auditores de controle externo, que se constituem em oito mil vozes e atuam encastelados em 33 Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e da União?

Ismar Viana explica: “Seguindo a simetria constitucional, é considerado auditor de controle externo aquele agente público cujo rol de atribuições do cargo abranja todas as atividades de fiscalização e instrução processual na esfera de controle externo e cujo ingresso no quadro próprio de pessoal tenha se dado por meio da prévia aprovação em concurso público específico de nível superior”.

“Para além da defesa do concurso público específico como meio legítimo e probo de ingresso na carreira, a ANTC defende o respeito ao devido processo legal na esfera de controle, em sua inteireza, objetivando com isso fiscalizações técnicas, independentes e imparciais, com vistas ao alcance da higidez nas finanças públicas. A sanidade das finanças públicas depende de Tribunais de Contas que funcionem bem, que gozem de credibilidade e independência, que sejam exemplo de organização para poder cobrar de outros órgãos sob sua jurisdição. Isso, inclusive, consta das normas internacionais de auditoria”, complementa.

Além da práxis de um auditor de controle externo no TCE-SE há seis anos – ele entra na casa em 2011, mas só três anos depois ele toma posse no cargo de auditor -, Ismar Viana tem toda uma vivência nessa área, com inserção acadêmica. Ele é mestre em Direito e graduado em Letras, desde 2005, e em Direito, em 2009. Tem pós-graduação em Direito Administrativo, em Combate à Corrupção e em Direito Educacional. E é professor.

É membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro e do Grupo de Pesquisa Constitucionalismo, Cidadania e Concretização de Políticas Públicas da Universidade Federal de Sergipe e é autor do livro “Fundamentos do Processo de Controle Externo”. 

Foi servidor concursado da Secretaria de Estado da Justiça (2002 a 2008) de Sergipe, onde atuou na Direção do Presídio de Tobias Barreto e foi secretário municipal da Administração e da Ordem Pública da Prefeitura de Lagarto (2009/2010). No Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, é coordenador da Unidade de Informações Estratégicas – UNIE – uma assessoria da Presidência. 

Na OAB de Sergipe, Ismar foi presidente da Comissão de Direito Administrativo e Controle da Administração Pública. Ministra cursos e faz palestras nas Escolas de Contas dos Tribunais de Contas do Brasil. 

Ismar dos Santos Viana nasceu no dia 18 de maio de 1980 em Aracaju, mas desde os primeiros dias de vida foi criado em Lagarto. Ele é filho de Ismael do Carmo Viana e de Marlene Santiago dos Santos Viana.

É casado com Viviane Viana, com quem é pai de João Vítor, de sete anos, e de Matheus, de 11 meses. 

“Se um gestor público não é exemplarmente responsabilizado por atos irregulares praticados no âmbito da gestão de recursos públicos, é de se esperar que ele venha a reincidir. Do jeito que o sentimento de impunidade, na esfera penal, leva o criminoso a alimentar a ideia de que o crime compensa, o mau gestor pensa da mesma forma”, diz ele.

A Entrevista com Ismar Viana vale a leitura.

ENTREVISTA

JLPolítica – Como se encontra o Brasil do ponto de vista da “fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial” nas esferas públicas?

Ismar Viana – A Constituição Federal traçou um bom modelo. O modelo de auditoria do setor público adotado pelo Brasil é dotado de instrumentos que, se bem utilizados, podem contribuir significativamente para prevenir desvios, para instrumentalizar procedimentos investigativos e ações de competências de outras instituições, como o Ministério Público e a Polícia Judiciária. No mundo todo, temos as Entidades de Fiscalização Superior – EFS – que fazem o controle das receitas e das despesas públicas, e o Brasil adotou o modelo de Tribunais de Contas. Ou seja, uma EFS dotada de poderes jurisdicional e sancionador, que não precisa de provocação para agir e suas decisões têm eficácia de título executivo. Isso significa que os Tribunais de Contas têm competência para investigar, para instruir seus processos, para acusar e ainda para julgar, e que essas decisões de multas e débitos passam direto para a fase de execução.

JLPolítica – Mas a fiscalização vinda daí pode ser considerada regular?

Ismar Viana – Esse é o modelo definido. Porém, do ponto de vista da efetividade dessa fiscalização, torna-se difícil mensurar, seja pela ausência de uma métrica definida para isso, seja porque os Tribunais de Contas são assimétricos entre si, ou seja, não estão todos no mesmo padrão de funcionamento. Qual seria uma boa métrica para aferir se fiscalização por parte dos Tribunais de Contas é boa ou ruim? Um critério que pode ser utilizado é se ela é regular ou não, pois uma fiscalização que não é regular, consequentemente não pode ser boa. Ser regular é ser independente, justa, célere, imparcial, pautada na legalidade e em critérios de relevância, materialidade e risco.

JLPolítica – Há democracia e Estado Democrático de Direito sem rigor de auditagem?

Ismar Viana – Não diria especificamente rigor, talvez expressões mais apropriadas sejam exemplaridade, regularidade. Se um gestor público não é exemplarmente responsabilizado por atos irregulares praticados no âmbito da gestão de recursos públicos, é de se esperar que ele venha a reincidir. Do jeito que o sentimento de impunidade, na esfera penal, leva o criminoso a alimentar a ideia de que o crime compensa, o mau gestor pensa da mesma forma. Isso, contudo, não nos credencia a afirmar que a punição deva ser a regra, muito menos que a administração pública é integrada apenas por maus gestores. Não é isso. Por outra banda, da mesma forma que não há Estado Democrático de Direito sem controle, também não há controle sem regras, do que resulta possível afirmar que a concretização do direito à regular atuação dos Tribunais de Contas é tida como condição de legitimidade das suas decisões, como condição de acreditação social, fim que depende do respeito ao postulado do devido processo legal. O fortalecimento do controle da administração pública constitui um dos elementos fundamentais da democracia.

JLPolítica – Mas o senhor não acha o estado brasileiro meio totalitário no que diz respeito à chance de dividir com o cidadão real, de carne e osso, a fiscalização da aplicação dos recursos públicos?

Ismar Viana – Na verdade, o controle das contas públicas, do manejo de recursos públicos em geral, não é concentrado exclusivamente nas mãos do Estado. O controle externo exercido pelos Tribunais e o controle social agem em situação de complementariedade. E assim quis o legislador constituinte originário, quando, de forma expressa e sem deixar margem para dúvida, positivou que qualquer cidadão é parte legítima para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante os Tribunais de Contas.

JLPolítica – O que difere o controle estatal do controle social?

Ismar Viana – É preciso esclarecer que o controle formal/estatal tem o dever de agir diante de ilegalidades ou irregularidades. Há obrigatoriedade de ação que decorre de um dever jurídico. Diferentemente do controle social, que age em condições de facultatividade. Não há obrigatoriedade de o cidadão acompanhar, denunciar. Não denunciando, o cidadão não responderá por essa omissão, por exemplo, diferentemente do agente controlador, cuja omissão pode ensejar responsabilização pessoal, se evidenciado o dolo ou erro grosseiro.

JLPolítica – Mas os múltiplos controles devem coexistir?

Ismar Viana – Penso que há uma necessária relação de coexistência entre os controles interno, externo e social, até com vistas a garantir o alcance do controle pleno, prestando-se a interditar abusos por omissão, que decorrem, não raras vezes, do compadrio entre os agentes públicos. Assim, se eventualmente agentes públicos se combinam para encobertar malfeitos, é de se esperar que o cidadão denuncie, inclusive na esfera judicial, por meio da ação popular, positivada em nosso ordenamento jurídico desde 1965 e reconhecida pelo STJ, recentemente, como via apta para indicar um ato como sendo doloso de improbidade administrativa para fins de imprescritibilidade do dano ao erário. 

JLPolítica – Na lida com os recursos públicos no Brasil não se pune mais do que se educa?

Ismar Viana – Com todo o respeito a quem pensa assim, esse discurso de excesso de punição parte de premissas equivocadas. Desconheço a existência de pesquisas e dados que demonstrem isso. Ao contrário, relatórios do CNJ indicam reduzido número de condenações relacionadas a atos de improbidade administrativa, por exemplo. Especificamente no âmbito do controle externo exercido pelos Tribunais de Contas, tem-se ouvido muito falar que os Tribunais precisam mais orientar do que punir, porém isso também parte de pelo menos duas premissas equivocadas. Primeiro, porque as funções pedagógica e sancionadora não se anulam entre si, mas se complementam, e a função sancionadora dos Tribunais de Contas é instrumental, também, de efeito pedagógico. O outro aspecto que precisa ser pontuado, até para não incorrer em crise de identidade institucional, é que a missão de orientar é precipuamente do controle interno, e não do Tribunal de Contas. Aquele, a propósito, precisa ser estruturado para cumprir a importante missão de apoiar o controle externo, que não tem a incumbência de assessorar gestores e, embora se preste a esclarecer dúvidas em tese, assim faz de forma excepcional e por meio de instrumentos próprios, como o processo de consulta, mantendo, dessa forma, a natureza colegiada das decisões, que são pautadas por um diálogo técnico e qualificado entre os atores processuais. Agir fora disso, inclusive, pode alimentar o discurso de imposição de pensamento único por parte dos órgãos de controle. 

JLPolítica – Para o senhor, quanto por cento do erro na aplicação dos bons paradigmas pelo agente público é intencional ou o é por falta de cultura e de domínio técnicos?

Ismar Viana – Embora isso venha sendo feito de forma corriqueira, considero temerário indicar percentual com base em ilações ou achismos, sem dados concretos. Contudo, costumo dizer que tanto o gestor incauto quanto o gestor mal-intencionado causam dano à coletividade. O primeiro, por desqualificação. O segundo, porque já ingressa na vida pública com o único propósito de se servir, de dilapidar o patrimônio alheio, enriquecendo-se ilicitamente. E esse intento é alcançado por meio do aparelhamento da máquina estatal, que passa pela seleção na escolha de ministros, secretários, diretores, presidentes de estatais, exatamente porque projetos ilegítimos de manutenção de poder se concretizam por meio de uma engrenagem, e não por meio de ação exclusiva do mandatário-mor. Assim, o mau gestor não tem intenção alguma de seguir bons e republicanos paradigmas. Por outro lado, também não se pode mais tolerar que erros de gestores sem domínio técnico continuem causando dano à coletividade, principalmente se a tomada de decisão se dá desconsiderando opinamentos verdadeiramente técnicos, aqui não incluídos os opinamentos por encomenda. Por isso, o processo de escolha pode não dizer tudo sobre a gestão, mas diz muito. 

JLPolítica – O senhor acha que o Brasil avançou ou involuiu no combate à corrupção?

Ismar Viana – Apesar da posição do Brasil no ranking da Transparência Internacional, no que tange ao nível insatisfatório de percepção da corrupção, não diria que o Brasil involuiu no combate à corrupção. Se olharmos para trás, principalmente de 2010 para cá, enxergaremos ações como a AP 470, que teve como origem o Mensalão, a Lava Jato, ações que desencadearam a responsabilização administrativa, criminal e cível de agentes públicos que ocupavam posições privilegiadas na estrutura estatal hierarquizada, chefes do Poder Executivo que perderam mandatos ilegitimamente conquistados por meio do abuso do poder político-institucional, um ex-presidente da República que chegou a ser preso, impeachment de uma presidente da República por acusação de desrespeito à legislação de finanças públicas, prisões processuais de empresários e empreiteiros com trânsito livre nos andares restritos dos ambientes institucionais. Leis anticorrupção foram aprovadas durante esse período.

JLPolítica – Seria, então, imprudente negar avanços nessa esfera?

Ismar Viana – Negar esse avanço é fechar os olhos para a realidade. Isso, contudo, não quer dizer que não tenha havido pontos de involução no combate à corrupção. Esses pontos existem e precisam ser veementemente rechaçados e socialmente censurados, até para que não fertilizem terreno para a involução generalizada. Diria que mudanças de entendimento jurisprudencial consolidado para atender a pessoas certas e determinadas entram nesses pontos específicos de involução. Mas, penso que o avanço significativo no combate à corrupção irá ocorrer quando o povo passar a considerar critérios de ética e integridade como elementos indispensáveis na escolha do Legislativo e Executivo, mudança de paradigma que repercutirá diretamente na escolha de integrantes do Judiciário, na escolha de ministros e conselheiros titulares dos Tribunais de Contas, na escolha de Ministros e secretários de estado e de municípios, etc.  

JLPolítica – O senhor identifica mesmo uma atuação coordenada dos órgãos como meio de defesa da probidade na gestão dos recursos públicos ou há um desencontro deles? 

Ismar Viana – Na verdade, quem incentiva essa atuação coordenada é a Constituição Federal, na medida em que, em diversas passagens do seu texto, elege a defesa da probidade como núcleo fundante, chegando a considerar, inclusive, que é crime de responsabilidade o ato do presidente da República que atente contra a probidade na administração. Assim, como os métodos tradicionais de obtenção de provas e evidências passaram a revelar baixa efetividade nas investigações cíveis pela prática de atos de improbidade administrativa e de crimes contra a administração pública, a atuação coordenada entre Ministério Público, Tribunais de Contas e Polícia Judiciária especializada, por exemplo, surge como saída apta a superar esses obstáculos probatórios, respeitando-se, sempre, o devido processo legal e os limites às competências dessas instituições, até como condição de legitimidade. Ocorre, contudo, que essa atuação coordenada, por meio dessa comunicação interinstitucional, não é uma realidade em todos os estados brasileiros. 

JLPolítica – A pandemia teria dificultado o controle dos gastos públicos, abrindo portas para fraudes e corrupções no manejo de recursos?

Ismar Viana – A Lei 13.979, de 2020, embora tenha flexibilizado as medidas para aquisição de bens e serviços durante o período de anormalidade pandêmica, objetivando atender a urgência da situação, dispôs também sobre um regime diferenciado de transparência dos atos públicos, criando a obrigação de disponibilização, em sítio oficial específico, de todas as contratações ou aquisições realizadas com base nela. Esse diferenciado dever de transparência imposto se deu em razão da mitigação de procedimentos tradicionais da Lei de Licitações, o que passou a ser visto como um caminho fértil para fraude e corrupção, induzindo, assim, um olhar mais acurado dos órgãos no controle dos atos praticados nesse período. Assim, no âmbito da esfera de controle, é sabido que não há como controlar atos públicos praticados em situação de anormalidade com a mesma régua que rege a situação de normalidade, sem qualquer mitigação, vez que a tomada de decisões em momento de anormalidade pandêmica é pautada por incertezas, urgência e excesso de demandas, e os padrões de controle têm que ocorrer na exata medida, tão somente, sob pena de se abrir espaços para o descontrole e agravamento dos efeitos da pandemia.

JLPolítica – Isso não abre margem para o perigo?

Ismar Viana – Isso, contudo, não pode ser interpretado como uma espécie de salvo-conduto para qualquer ação estatal. Não pode ser confundido com a ausência de controle, sobretudo porque abusos tendem a se tornar mais recorrentes em situações de instabilidade e anormalidade, terreno fértil para o arbítrio, a fraude, a corrupção, conforme aponta grupo de trabalho da Transparência Internacional.

JLPolítica – Com oito mil auditores de controle externo e 33 Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e da União escarafunchando e fiscalizando tanto a vida financeira nacional era de se esperar erro zero na aplicação dos recursos. Mas por que, enfim, não é assim?

Ismar Viana – O bom controle não é aquele que pune muito, mas aquele que responsabiliza bem. E responsabilizar bem pressupõe tecnicidade e imparcialidade, tanto na fiscalização e instrução processual, a cargo dos auditores de controle externo, quanto no julgamento, a cargo dos conselheiros e ministros. É preciso deixar bem claro que a tempestiva fiscalização é indutora de efetividade de boa gestão, mas não nos parece aceitável a afirmação no sentido de que a má gestão decorre unicamente da falta de fiscalização. Isso porque aos Tribunais de Contas é incumbida a missão de controlar, não a missão de gerir a coisa pública. O controle tardio, contudo, reconheça-se, é descontrole. Costumo dizer que a escassez de recursos, associada à má aplicação deles, tem impulsionado o controlador a se adequar à conjuntura atual, priorizando o controle concomitante, que constitui um eficiente exercício de biópsia. Assim, quanto mais tempestiva e imparcial for a fiscalização, mais facilmente sentido será o efeito da ação de fiscalização. 

JLPolítica – Qual é o risco de conluio e compadrio entre quem fiscaliza quase monocraticamente e quem executa orçamentos públicos no Brasil?

Ismar Viana – Como disse, o modelo de controle das receitas e despesas públicas adotado pelo Brasil foi o de Tribunal de Contas. Ou seja, a Constituição quis que os julgamentos dos atos praticados pelos gestores no manejo de recursos públicos se dessem de forma colegiada, e não monocrática, até para minimizar riscos desta natureza. E não é apenas uma colegialidade decisória, mas uma colegialidade processual-decisória: quis que as decisões dos Tribunais de Contas se dessem a partir de um diálogo processual qualificado, dotando os Tribunais de um quadro próprio de pessoal e de um Ministério Público Especial, além dos julgadores. Por isso, para evitar eventuais abusos de agentes controladores, inclusive por omissão, vindo a empoderar pessoas ou grupos, é imprescindível a independência entre quem fiscaliza e instrui os processos de controle externo, quem faz o juízo de conformação legal e quem julga, cumprindo a devida segregação de funções. É imprescindível, então, a observância ao devido processo legal em todo o curso processual, com atuação de agentes legalmente competentes e, como dito, independentes, o que pressupõe vínculo qualificado e, por isso, o constituinte exigiu um quadro próprio de pessoal para as fiscalizações e instruções processuais, cujo ingresso se dá por concurso público específico. A independência fica comprometida com vínculos precários, em que o agente é nomeável e demissível a critério de uma autoridade. Já imaginou poder escolher ou influenciar na escolha de quem vai lhe fiscalizar ou fiscalizar os seus? Por isso, em Tribunais cujos modelos de funcionamento sejam suscetíveis a interferências indevidas, é natural que seja alto o risco de conluio e compadrio entre quem controla e quem executa.

JLPolítica – O que de fato é a ANTC no Brasil e o que esta instituição tem feito pela sanidade da fiscalização das finanças públicas?

Ismar Viana – A ANTC é uma entidade de classe de âmbito nacional que representa exclusivamente os auditores de controle externo. E quem são esses agentes públicos? Seguindo a simetria constitucional, é considerado auditor de controle externo aquele agente público cujo rol de atribuições do cargo abranja todas as atividades de fiscalização e instrução processual na esfera de controle externo e cujo ingresso no quadro próprio de pessoal tenha se dado por meio da prévia aprovação em concurso público específico de nível superior. Para além da defesa do concurso público específico como meio legítimo e probo de ingresso na carreira, a ANTC defende o respeito ao devido processo legal na esfera de controle, em sua inteireza, objetivando com isso fiscalizações técnicas, independentes e imparciais, com vistas ao alcance da higidez nas finanças públicas. A sanidade das finanças públicas depende de Tribunais de Contas que funcionem bem, que gozem de credibilidade e independência, que sejam exemplo de organização para poder cobrar de outros órgãos sob sua jurisdição. Isso, inclusive, consta das normas internacionais de auditoria.

JLPolítica – Para presidi-la, o senhor terá de deixar a sua base sergipana ou fará isso daqui mesmo?

Ismar Viana – Embora a sede da entidade seja em Brasília, onde também se concentra parcela significativa dos contratos, nenhum dos ex-presidentes precisou se afastar das suas atividades para se dedicar à atividade associativa. Isso se deve ao fato de a agenda da ANTC coincidir com a agenda institucional defendida pelos Tribunais de Contas, pautada pelo alcance da boa e regular gestão pública. Além disso, a Diretoria da ANTC é composta por um vice-presidente nacional, dois vice-presidentes regionais, um vice-presidente para assuntos do TCU, além de três diretores titulares e mais três diretores adjuntos, contando com membros de todas as regiões do Brasil para conduzir as demandas da entidade e tomar as decisões, todas colegiadas. 

JLPolítica – Não seria razoável que no Brasil houvesse, no corpo dos três executivos – nacional, estadual e municipal -, um efetivo técnico, imutável e intocável por lei no comando das finanças e dos orçamentos públicos? Uma espécie de magistratura, que não se envolvesse com eleições e nem polêmicas?

Ismar Viana – Estabelecendo um comparativo entre o quadro de pessoal nas esferas municipal, estadual e federal é possível perceber que há realidades indiscutivelmente diferenciadas. Infelizmente, há uma carência de pessoal qualificado vinculado à esfera municipal.

JLPolítica – Por que é assim?

Ismar Viana – Isso se deve a vários fatores, que envolvem a rotatividade no provimento de cargos públicos e a terceirização de atividades rotineiras, interditando a concretização do princípio da continuidade dos serviços públicos e inviabilizando a existência de uma memória institucional, remuneração de baixa atratividade, ausência de incentivo à qualificação funcional do reduzido quadro efetivo, fatores que explicam a falta de profissionalização na administração pública municipal. Por exemplo, investe-se em treinar pessoas que não integram o quadro efetivo do ente, e a rotatividade leva consigo todo esse investimento realizado, recomeçando um ciclo com pessoas que não detêm expertise para a atividade.

JLPolítica – O senhor veria algo que mudasse isso?

Ismar Viana – Só vislumbro que o concurso público específico ainda é o meio mais eficaz para proteger esses agentes públicos de investidas ilegítimas de gestores que porventura não se comportem como administradores da coisa alheia, mas como donos dela. 

JLPolítica – Por que a falta de transparência nos órgãos públicos brasileiros é o ponto mais saliente na existência deles e não o contrário disso? Ou o senhor pensa diferentemente?

Ismar Viana – Há diversos pontos críticos. Contudo, negar o dever de transparência é escancarar as portas para a prática das mais gravosas condutas lesivas ao patrimônio público. Na administração pública, o que não pode ser visto, via de regra, não pode ser praticado. A propósito, a negativa de publicidade de atos oficiais constitui ato de improbidade administrativa, não podendo, pois, ser tratada como mera falha, mas como irregularidade materialmente relevante que pode ensejar a atuação nas distintas esferas de responsabilização. 

JLPolítica – Gasta-se mal com pessoal na esfera pública brasileira?

Ismar Viana – Recentemente, publiquei um artigo em que fiz menção à manifestação da Consultoria Legislativa do Senado Federal (Nota Informativa n. 5.394, de 2020), que, ao analisar dados sobre a folha de pagamentos do Governo Federal e de seis Governos Estaduais, citando estudos do Banco Mundial, de 2019, corroborou a existência de uma série de distorções nos gastos com pessoal, deixando, contudo, de apontar prováveis causas dessas distorções, no rol das quais se incluem o excesso de Cargos em Comissão na administração pública, a realização de concursos públicos sem estudo de dimensionamento de pessoal e sem a estimativa de impacto orçamentário-financeiro, o que tem levado gestores a convocarem em número superior ao previsto nos editais, satisfazendo, por vezes, interesses pessoais, e não mirando na real necessidade da administração. Disfunções como essas explicam a razão pela qual a esfera municipal concentra 57% dos servidores. 

JLPolítica – Paga-se mal ou bem nos poderes públicos brasileiros em comparação com outras nações democráticas?

Ismar Viana – Para estabelecer comparativo dessa natureza, é preciso levar em consideração aspectos políticos, econômicos, sociais, à guisa de exemplo, o que é uma tarefa muito difícil. Nos últimos meses, até em razão da reforma administrativa que tramita no Congresso Nacional, têm-se ouvido críticas que giram em torno de altos salários, férias de 60 dias, bônus de eficiência para aposentados, fatores críticos que têm sido indicados como causas do nível de percepção da sociedade em relação à qualidade do serviço público brasileiro, a partir de dados levantados pela OCDE e divulgados por integrantes do governo. Contudo, o que se ouve pouco falar é que há agentes públicos que prestaram concurso para o desempenho de atividades de nível intermediário de complexidade, mas que, em razão de lobby, passaram a perceber remuneração correspondente a cargos de grau de complexidade e responsabilidade de nível superior, ou salários despendidos com os Cargos em Comissão, dos quais sequer é possível identificar as atribuições, por não estarem previstas nas leis que os criou. Nessa perspectiva, eu diria que se paga mal, na medida em que não há correlação lógica entre o serviço entregue e a contraprestação remuneratória. Não há, portanto, que se falar em combate a privilégios sem a imperiosa correlação entre a remuneração e o grau de complexidade e responsabilidades das atribuições do cargo, como determina o próprio artigo 39, §1 da Constituição, sob pena de ensejar distorções a privilegiar (remunerar sem critérios) e comprometer a eficiência e a qualidade na prestação dos serviços públicos, ao invés de incentivá-las. 

JLPolítica – A quem competiria fixar e executar programas de gestão e ética que redundassem em integridade na aplicação dos recursos públicos?

Ismar Viana – A qualquer unidade orgânica dos três poderes. Organizações, sejam públicas ou privadas, têm buscado implementar mecanismos contra a fraude e a corrupção. O TCU, por exemplo, adotou referenciais próprios, como o de combate à fraude e à corrupção, o de governança. Dentro dessa estrutura, há alguns componentes, um dos quais é a prevenção, que abrange a gestão da ética e da integridade e que tem como objetivos, a título de exemplo, promover a cultura da ética e da integridade na organização, instituir política de prevenção de conflitos de interesses, estabelecer condições para lidar com variação significativa de patrimônio.

JLPolítica – Qual é a sua compreensão de um discurso persistente, e de fundo popular, de que os Tribunais de Contas deveriam deixar de existir?

Ismar Viana – Em 2017, na Câmara dos Deputados, participei de audiência pública que discutia esse tema, especificamente a PEC 302/2017. Na oportunidade, expus as razões pelas quais considero esse discurso simplista, equivocado e desprovido de racionalidade de lógica, notadamente porque as instituições são permanentes, são de Estado, prestam-se a servir aos cidadãos e não deles se servir. Se há notícias de uso indevido de cargos públicos para exploração de benefícios de interesses exclusivamente pessoais, que o Ministério Público possa atuar e buscar a exemplar responsabilização de quem age em condição de deslealdade institucional, sejam eles auditores de controle externo, procuradores de contas, conselheiros ou ministros. Hoje, com os métodos modernos de obtenção de provas e evidências, tem sido mais fácil coletar elementos de informações e de provas para alicerçar condenações de agentes públicos que porventura ajam nessas bases. Não podemos confundir, contudo, disfunções institucionais com desvios funcionais dos seus agentes. As próprias instituições, em verdade, também são vítimas dos desvios, além da sociedade. Imagine se cada caso de corrupção envolvendo integrante do Poder Judiciário ou do Ministério Público ensejasse discurso de extinção dessas instituições! 

JLPolítica – Qual é a sua visão de que os efeitos da má gestão pública guardam relação com o aparelhamento de instituições de controle?

Ismar Viana – Quando há um aparelhamento das instituições de controle, a deliberada omissão dos seus agentes, comissão por omissão, mais apropriadamente falando, funciona como uma espécie de infiltração às avessas ou reconfiguração cooptada do Estado, como define a doutrina especializada, criando um ambiente de tranquilidade para quem intenciona dilapidar o patrimônio público, pavimenta terreno para que o transgressor não venha a ser devidamente responsabilizado. 

JLPolítica – O senhor identifica um descontrole nas recorrentes interferências da Polícia Federal em atos disformes dos poderes públicos nacionais relativos a recursos ou vê isso como algo normal?

Ismar Viana – A Polícia Federal é uma instituição que goza de distinta credibilidade. E hoje não é difícil perceber que a confiança dos cidadãos nas instituições termina por conferir legitimidade à atuação delas. As investigações criminais relacionadas à gestão de recursos públicos, voltadas a reprimir crimes contra a administração pública, previstos no Código Penal ou em legislações esparsas, não surgem de “ouvir dizer”. Particularmente, eu não acredito que um delegado da Polícia Federal venha a instaurar um inquérito policial com base em denúncia anônima, apócrifa ou inqualificada, o que me leva a concluir que essas chamadas “interferências”, na verdade, são pautadas no próprio dever legal, não sendo ingerências indevidas, não podendo ser rotuladas como ativismo ou ações pessoalizadas. Na realidade, são intervenções devidas que decorrem do dever de proatividade que se espera de instituições que têm como razão de existir o combate à malversação de recursos públicos, à corrupção, à fraude, à má gestão.

JLPolítica – O senhor tem noção de quanto, em dinheiro, a ação fiscalizatória de vocês auditores evita que desça pelo ralo no Brasil, atualmente?

Ismar Viana – Segundo Relatório Anual de Atividades do TCU, de 2019, para cada R$ 1,00 investido no Tribunal de Contas da União há um retorno de R$ 21,98. Ações que envolvem, a título de exemplo, benefícios decorrentes da análise de atos de pessoal e a redução de preço em processos licitatórios específicos. Importante registrar que, por expressa previsão no artigo 75 da Constituição Federal, o TCU é paradigma, modelo, de organização e fiscalização para os demais Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios. O alcance do anunciado direito ao equilíbrio fiscal intergeracional e a efetividade do pacto federativo passam pela concretude dessa simetria entre os 33 Tribunais de Contas. 

JLPolítica – Por fim, o senhor, como professor, não acha que a educação formal e normativa brasileira deixa a dever numa práxis melhorativa de valores éticos de formação do cidadão para o zelo com as finanças e os recursos púbicos?

Ismar Viana – Os dados relacionados à educação revelam, por si sós, que o Brasil precisa concretizar o direito fundamental a ela. Parafraseando a professora Maria Paula Dallari Bucci, com quem tive a honra de debater, recentemente, sobre a famigerada reforma administrativa, eu perguntaria: como seria possível um analfabeto exercer o controle social se ele não se encontra apto a transformar dados em informações? Como esperar que um cidadão sem acesso a um nível mínimo de qualificação possa fazer juízo de criticidade desses dados? Com isso quero dizer que, antes de se discutir educação para a cidadania, é necessário concretizar o direito à educação formal. Por outro lado, quanto aos valores éticos, prefiro abraçar a teoria da ética sob a perspectiva de Immanuel Kant: um analfabeto pode até não saber que receber dinheiro do poder público sem trabalhar é uma transgressão ao ordenamento jurídico, mas ele sabe que isso não é certo. Devemos ter em mente que a ética que parametriza as relações interpessoais reflete diretamente na ética que pauta as relações funcionais, podendo causar, assim, prejuízos imensuráveis a um povo, por afetar, também diretamente, a tão almejada pacificação social.

JLPolítica – O senhor defende, por óbvio, um limite clássico entre a coisa pública e coisa a particular… 

Ismar Viana – Sim. O alcance e o sentido da expressão “res publica”, coisa de todos, não significa coisa sem dono, mas nos remete à participação popular, à transparência, condicionado o permanente alcance da paz social à adoção de modelos essencialmente – e não apenas formalmente – republicanistas. É sempre oportuno lembrar que o ideal de República só pode ser atingido se projetos ilegítimos de manutenção de poder não integrarem planos de ação daqueles escolhidos para conduzir o destino de todos. É preciso que os homens que pregam o bem sejam verdadeiramente homens de bem e do bem, que cumpram as suas missões institucionais e funcionais e que sejam, de fato, cidadãos.

Fonte: https://jlpolitica.com.br/entrevista/ismar-viana-nao-ha-estado-democratico-de-direito-sem-controle-tambem-nao-ha-controle-sem-regras

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